Os Versos de Ouro de Pitágoras
por Carlos Cardoso Aveline.
Os Versos de Ouro da tradição pitagórica
constituem um documento de valor inestimável. Este texto breve e único é
um mapa preciso do caminho prático para a sabedoria divina.
É
verdade que o documento tem sido mantido em um relativo esquecimento,
como tantos outros que pertencem à sabedoria tradicional do ocidente.
Mas isso só aumenta o valor da sua descoberta pessoal por parte do
leitor. Por outro lado, o significado desse texto brilha hoje dentro de
um contexto maior, pelo qual as filosofias clássicas grega e romana
vêm, desde o século 20, recuperando gradualmente a sua visibilidade e a
sua popularidade.
Traduzo
os Versos a partir do texto de Hierocles de Alexandria[1], com base na versão
inglesa feita por N. Rowe em 1707, e adotada hoje pela maior parte dos
estudiosos da tradição pitagórica[2]. Examinei outras versões dos Versos, em
vários idiomas, mas opto por essa versão de Hierocles em inglês,
cotejada, em alguns casos, com a de Fabre d’Olivet. Acrescento
comentários e informações adicionais com base na filosofia clássica e na
filosofia esotérica.
Os
Versos de Ouro expressam em poucas palavras e com uma clareza
definitiva o compromisso de vida dos pitagóricos de todos os tempos. Sua
mensagem será provavelmente tão atual dentro de 20 ou 25 séculos como
era na Grécia e na Roma antigas. Por outro lado, durante a complexa
transição atual para uma civilização planetária e democrática, os Versos
apontam e sinalizam impecavelmente o caminho da autoregeneração de
cada indivíduo, que constitui a base fundamental para um renascimento
coletivo da sabedoria no futuro a médio prazo.
A
seguir, pois, um texto imortal, que se pode e deve ler e reler muitas
vezes ao longo do tempo. É um mapa, um guia e um tratado completo sobre a
vida dos sábios.
1. Honra em primeiro lugar os deuses imortais, como manda a
lei.
Os
deuses ou espíritos imortais são os grandes instrutores da humanidade,
os Adeptos mencionados na literatura teosófica clássica, os
grandes Rishis da Índia antiga e os Imortais da tradição taoísta.
Esotericamente, a lei referida aqui é a lei da evolução, que guia
simultaneamente o cosmo e cada ser que vive nele.
Mas,
de acordo com o ponto de vista de Fabre d’Olivet, o Verso fala da lei e
dos costumes do país em que se vive. Assim, até para evitar
perseguições em tempos de intolerância, o praticante dos Versos de Ouro
pode adotar qualquer religião externa, adaptando-se à cultura em que
nasceu, enquanto segue internamente a doutrina esotérica dos
pitagóricos.
2. A seguir, reverencia o juramento que fizeste.
A
decisão de buscar a verdade, manifestada através de um juramento ou
voto espiritual, é uma expressão dinâmica da nossa conexão interior com o
mundo divino. Daí sua importância, a ponto de ser colocada na abertura
dos Versos de Ouro. Este juramento, no seu aspecto mais profundo, é
simplesmente a decisão, tomada em nosso próprio coração, de seguir o
caminho da sabedoria. (O juramento dos pitagóricos é discutido com mais
detalhes no Verso 48.)
3. Depois os heróis ilustres, cheios de bondade e luz.
Os
heróis ilustres são seres de alto grau de evolução, embora ainda não
tenham chegado à libertação espiritual alcançada pelos Adeptos
ou Imortais.
4. Homenageia então os espíritos terrestres, e manifesta por
eles o devido respeito.
Os
espíritos terrestres são os homens bons e sábios.
5. Honra em seguida a teus pais, e a todos os membros da tua
família.
Cumprir
os deveres familiares e ter um comportamento equilibrado no plano
emocional garante uma boa parte da tranqüilidade básica necessária à
busca da sabedoria divina. O desapego é igualmente importante. Um
instrutor espiritual dos Himalaias escreveu no século 19 para um
discípulo leigo, Alfred Sinnett: “Parece pouco a você que o ano anterior
tenha sido empregado apenas em seus ‘deveres familiares’? Não; que
melhor causa para recompensa, que melhor disciplina que o cumprimento do
dever a cada hora e a cada dia? Creia-me, meu ‘aluno’, o homem ou a
mulher que é colocado pelo Carma no meio de deveres, sacrifícios e
amabilidades pequenos e definidos irá, através do fiel cumprimento
deles, erguer-se à dimensão maior do Dever, do Sacrifício e da Caridade
para com toda a humanidade. Que melhor caminho, para a iluminação
buscada por você, que a vitória diária sobre o Eu, a perseverança
apesar da ausência de progresso psíquico visível, o suportar da má-sorte
com aquela serena resistência que a transforma em vantagem espiritual –
já que o bem e o mal não podem ser medidos por acontecimentos no plano
inferior ou físico?”[3]
6. Entre todos os outros, escolhe como amigo aquele que se
distingue por sua virtude.
Na
sua obra intitulada “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates”, Xenofonte
conta como Sócrates ensinou a Cristóbulo a arte de afastar-se de homens
ignorantes. Ao terminar sua exposição, o sábio aconselha: “Fica
tranqüilo, Cristóbulo: procura fazer-te bom e, uma vez bom, põe-te à
caça dos corações virtuosos.”[4]
7. Aproveita sempre suas suaves exortações, e segue o
exemplo das suas ações virtuosas e úteis.
8. Mas evita, tanto quanto possível, afastar-te do teu amigo
por um pequeno erro.
9. Porque a força é limitada pela necessidade.
Hierocles
comenta: “É para o nosso benefício mútuo que a lei da amizade nos une,
para que os nossos amigos possam ajudar-nos a crescer em virtude, e para
que nós possamos, reciprocamente, ajudá-los em seu progresso nesse
sentido. Porque, como companheiros de viagem no caminho que leva a uma
vida melhor, nós deveríamos, para nosso proveito comum, transmitir a
eles as coisas boas que possamos descobrir, talvez com mais clareza que
eles.” E Hierocles faz uma advertência: “Há apenas uma coisa que não
devemos aceitar em um amigo, que é que ele caia em um comportamento
corrupto”. Nesse ponto, como sempre, valem mais os atos que as palavras.
Mas, acrescenta Hierocles, nessa situação “não devemos vê-lo como
inimigo, porque já foi nosso amigo, nem devemos vê-lo como nosso amigo,
por causa do seu comportamento decadente”.
10. Lembra que todas essas coisas são como eu te disse.
11. Mas acostuma-te a vencer essas paixões: primeiro, a gula;
depois a preguiça, a luxúria e a raiva.
Segundo
Hierocles, “essas são as paixões que devemos restringir e manter
dominadas, para que elas não possam descompor e obstruir a nossa razão.”
12. Nunca faças junto com outros, nem sozinho, algo que te dê
vergonha.
13. E, sobretudo, respeita a ti mesmo.
Os
versos 12 e 13 recomendam duas coisas inseparáveis: a auto-restrição e o
auto-respeito, ou, em outras palavras, a abstenção do erro e a
auto-estima. De fato, só com respeito por nós mesmos – um sentimento
que na verdade é amor pelo que há de mais puro e elevado em nós –
podemos ter uma suave disciplina não-repressiva que nos permite
abster-nos daquilo que sabemos que é errado.
14. Pratica a justiça com teus atos e com tuas palavras.
15. E estabelece o hábito de nunca agir impensadamente.
16. Mas lembra sempre um fato, o de que o destino estabelece
que a morte virá a todos;
17. E que as coisas boas do mundo são incertas, e assim como
podem ser conquistadas, podem ser perdidas.
18. Suporta com paciência e sem murmúrios a tua parte, seja
qual for,
19. Dos sofrimentos que o destino determinado pelos deuses
lança sobre os seres humanos.
Temos
aqui as idéias centrais adotadas mais tarde pelos filósofos estóicos. O
filósofo-imperador neoestóico Marco Aurélio recomendava: “Vive cada dia
da tua vida como se fosse o último”. Os estóicos construíram sua
filosofia sobre a idéia da indiferença diante da dor e do prazer
externos e de curto prazo. Essa regra básica da arte de viver ocupa
lugar central em Sócrates, Platão, e muitos outros filósofos, para não
falar em tradições orientais como Raja Ioga e outras.
Em
relação ao Verso 19, Platão escreve em A República que “Deus” –
que para os gregos é a pluralidade estrutural do mundo divino, a idéia
universal – nunca é o causador dos sofrimentos de alguém. Ali, Platão
faz Sócrates afirmar: “Deus não é a causa de tudo, mas tão-somente do
bem”.[5] Estaria, então,
equivocado o Verso 19? Não. O Verso não é fatalista. O “destino
determinado pelos deuses” e que é lançado sobre o ser humano foi criado
pelo próprio homem. Os “deuses”, as inteligências divinas em seu
funcionamento coletivo, apenas ordenam e organizam, natural e
espontaneamente, o carma ou destino que a própria humanidade cria para
si. Por isso é errado rezar ou pedir favores a deuses ou seres divinos. A
solução prática é agir bem e acertadamente, esperando que o bom carma
amadureça para que os seus resultados possam ser colhidos. No entanto,
as orações são úteis sempre que servem para que o nosso pensamento se
erga acima das angústias. O pensamento positivo dá bons frutos, e embora
as orações não tenham valor como pedidos, elas funcionam como
mecanismos de elevação da consciência.
20. Mas esforça-te por aliviar a tua dor no que for possível,
21. E lembra que o destino não manda muitas desgraças aos bons.
O
destino, como vimos, é o carma, isto é, o encadeamento de ações
e reações da vida. O carma, diz o verso 21, não manda muitas desgraças
aos bons. Está correto. Porém, a vida é complexa, e é oportuno lembrar
uma advertência de Helena Blavatsky, que escreveu o seguinte em 1883: “O
chela” – isto é, o aprendiz da sabedoria eterna – “é levado a
enfrentar não só todas as más propensões latentes em sua natureza, mas,
por acréscimo, todo o conjunto de poder maléfico acumulado pela
comunidade e nação a que ele pertence. Porque ele é uma parte integral
daqueles agregados, e tudo o que afeta tanto o homem individual como o
grupo (cidade ou nação) reage um sobre o outro. Nesta instância a luta
pela bondade destoa do conjunto da maldade em seu meio ambiente, e atrai
sua fúria sobre si.”[6]
Esse
parece ser o motivo pelo qual grande quantidade de seres que
trabalharam pela regeneração humana foram severamente perseguidos, ou
pelo menos incompreendidos, em seu tempo. Entre eles estão Sócrates,
Pitágoras, Apolônio de Tiana, São Francisco de Assis, São João da Cruz,
Martim Lutero, Mahatma Gandhi, Alessandro Cagliostro e a própria
Helena Blavatsky. E foram milhares. A vida de Jesus, no Novo Testamento,
simboliza e retrata esse mesmo processo. Porém, é central o fato de
que, sendo bons, eliminamos as fontes e a causa do nosso sofrimento. E
isso ocorre mesmo que, a curto prazo, haja desafios e dificuldades. Não é
por acaso que o caminho da libertação espiritual passa pelo desapego e
pela indiferença à dor e ao prazer.
Esse
verso também sugere que, se formos bons e altruístas, teremos uma quota
de felicidade. Mas essa felicidade será predominantemente interior e
não surgirá de uma vida externamente prazenteira ou indulgente.
22. O que as pessoas pensam e dizem varia muito; agora é algo
bom, em seguida é algo mau.
23. Portanto, não aceites cegamente o que ouves, nem o rejeites
de modo precipitado.
24. Mas, se forem ditas falsidades, retrocede suavemente e
arma-te de paciência.
25. Cumpre fielmente, em todas as ocasiões, o que te digo
agora:
26. Não deixes que ninguém, com palavras ou atos,
27. Te leve a fazer ou dizer o que não é melhor para ti.
28. Pensa e delibera antes de agir, para que não cometas ações
tolas,
Um
raja iogue dos Himalaias escreveu, no século 19, em uma carta para sua
discípula ocidental Laura C. Holloway: “Como você pode discernir o real
do irreal, o verdadeiro do falso? Só através do autodesenvolvimento.
Como conseguir isso? Primeiro, precavendo-se contra as causas do
auto-engano. E isso você pode fazer dedicando-se, em determinada hora ou
horas fixas, a cada dia, totalmente só, à autocontemplação, a escrever,
a ler, a purificar suas motivações, a estudar e corrigir seus erros, ao
planejamento do seu trabalho na vida externa. Essas horas deveriam ser
reservadas como algo sagrado e ninguém, nem mesmo o seu amigo ou seus
amigos mais íntimos, deveria estar com você naquele momento. Pouco a
pouco sua visão ficará clara, você descobrirá que as névoas se dissipam
(...).” [7]
29. Porque é próprio de um homem miserável agir e falar de modo
impensado.
A
expressão “homem miserável” significa aqui “homem que sofre”, um ser
que passa por misérias.
30. Mas faze aquilo que não te trará aflições mais tarde, e que
não te causará arrependimento.
31. Não faças nada que sejas incapaz de entender,
32. Mas aprende tudo o que for necessário aprender, e desse
modo terás uma vida feliz.
33. Não esqueças de modo algum a saúde do corpo,
Uma
espiritualidade empobrecida e estreita, baseada em crenças cegas e
cerimônias, acabou provocando na cultura ocidental um tradicional
desprezo pelo corpo, como se só o espírito fosse bom e a “carne” fosse
má. Esse grave erro tem levado à visão do caminho espiritual como algo
distanciado da prática concreta. Para a sabedoria eterna, como para a
filosofia clássica, o corpo é o templo habitado pelo espírito, e deve
ser tratado com respeito e consideração. Matéria, energia e espírito são
três aspectos da mesma Vida Una[8]. Assim, o corpo é um instrumento
prático para vivenciar e expressar o que é sagrado.
34. Mas dá a ele alimento com moderação, o exercício necessário
e também repouso à tua mente.
Aqui
parece ter havido uma contaminação do texto ao longo do tempo. Na
versão disponível atribuída a Hierocles, lemos, literalmente: “Mas dá a
ele bebida e carne na medida certa, e também o exercício que ele
necessita”. Na verdade, sabe-se que as comunidades pitagóricas eram
vegetarianas. Como a menção a consumo de carne está fora de contexto,
opto, em parte, pela versão de Fabre d’Olivet, que diz, literalmente:
“Dá, com moderação, alimento ao corpo, e à mente repouso”.
35. O que quero indicar com a palavra moderação é aquilo que
não te provocará mal-estar.
Os
extremos devem ser evitados. Essa é uma menção ao caminho do meio e ao
avanço gradual a ser realizado pelo aprendiz, sem pressa e sem pausa.
36. Acostuma-te a uma vida decente e pura, sem luxúria.
37. Evita todas as coisas que causarão inveja.
Isso
nem sempre é possível para o aprendiz. Até mesmo a bondade e a
sinceridade de alguém podem ser motivos de inveja – por exemplo, por
parte daqueles que decidiram fazer ouvidos surdos à sua própria
consciência. Aquele que optou pela astúcia pode sofrer agudamente ao
ver as ações corretas e as motivações puras de alguém que escuta a voz
do coração. Um tal indivíduo poderá invejar e atacar o aprendiz da
sabedoria, tentando legitimar e confirmar desse modo, para si mesmo e
para os outros, a sua decisão de abandonar como algo “impossível” ou
“utópico”, a prática da sinceridade. Veja, a propósito, o comentário ao
Verso 21. Porém, a cautelosa recomendação do Verso 37 é fundamental.
Servirá para reduzir em boa parte os sofrimentos no caminho do
aprendizado.
38. E não cometas exageros no uso de bens materiais. Vive como
alguém que sabe o que é honrado e decente.
39. Não ajas movido pela cobiça ou avareza. É excelente usar a
justa medida em todas essas coisas.
40. Faze apenas as coisas que não podem ferir-te, e decide
antes de fazê-las.
Os
princípios da conduta pitagórica devem ser ponderados uma e outra vez,
até que sejam absorvidos em cada um dos níveis de consciência e nas
práticas da rotina diária do aprendiz. Os caminhantes espirituais
gradualmente se transformam, eles mesmos, na verdade universal que é
tema do seu estudo e da sua contemplação. Por isso os Versos 38 a 40
reforçam duas idéias fundamentais sugeridas antes: agir moderadamente
e nunca atuar de modo impensado. Segundo o Verso 40, devemos
antecipar mentalmente as conseqüências das nossas ações e evitar aquilo
que nos causará mais mal do que bem. Quase toda ação causa efeitos
contraditórios, alguns agradáveis, outros desagradáveis. Há ações
altruístas, por exemplo, que implicam um grau de sacrifício
relativamente alto a curto ou a médio prazo. Mas o saldo das ações deve
ser positivo a longo prazo. E a decisão a respeito delas deve ser
soberana.
41. Ao deitares, nunca deixes que o sono se aproxime dos teus
olhos cansados,
42. Enquanto não examinares com a tua consciência mais elevada
todas as tuas ações do dia.
43. Pergunta: “Em que errei? Em que agi corretamente? Que dever
deixei de cumprir?”
44. Recrimina-te pelos teus erros, alegra-te pelos acertos.
Cada
dia da vida é a imagem em miniatura de uma vida inteira. Pela manhã
cedo temos a vitalidade de uma criança, e à noite sentimos o cansaço de
alguém que é muito velho. A revisão pitagórica nos permite avaliar o
carma plantado e o carma colhido durante aquele dia. Desse modo podemos
dormir mais completa e profundamente, e com a consciência em paz. O
estudante da sabedoria esotérica fica, assim, livre para o aprendizado
que ocorre durante o sono do seu corpo físico. Porque, como se sabe,
certos sonhos podem ser fonte importante de ensinamento espiritual.
O
hábito da auto-observação previne alguns erros e corrige outros. Essa
prática também prepara a revisão do passado que irá ocorrer na fase
final da velhice, e mesmo no último minuto da nossa vida física. Essas
revisões finais do conjunto da existência servem, por sua vez, para
antecipar e definir o rumo geral da vida após a morte, inclusive os seus
dois principais estágios, que são o kama-loka (etapa de
purificação) e o devachan (etapa divina).
De
modo semelhante, em pequena escala, a revisão ao final de cada dia
ajuda a definir o rumo e a qualidade de tudo o que irá ocorrer durante o
sono e até o novo despertar. Graças à revisão pitagórica do final do
dia, cada nova manhã traz consigo uma vida mais livre do perigo de
repetir os erros do passado, e mais aberta para o potencial ilimitado de
felicidade que cada ser humano tem sempre diante de si.
45. Pratica integralmente todas essas recomendações. Medita bem
nelas. Tu deves amá-las de todo coração.
46. São elas que te colocarão no caminho da Virtude Divina,
O
termo virtude – areté, em grego – não é algo a ser cultivado
superficial ou artificialmente, como pode ocorrer no contexto de certas
teologias cristãs. Areté, explica Platão, é aquela atividade própria e
específica de uma determinada coisa ou pessoa. A virtude de uma
bibicleta é o movimento, a virtude de um peixe é nadar, e a virtude de
um médico é curar. Assim, também, a virtude divina da alma humana é uma
característica e uma vocação essencial da parte superior e racional do
indivíduo. Ela é o dharma, o Tao, aquilo que surge naturalmente
de uma alma imortal livre de apegos externos.[9]
47. Eu o juro por aquele que transmitiu às nossas almas o Quaternário Sagrado,
48. A fonte da Natureza, cuja evolução é eterna.
O
Quaternário Sagrado é a Tétrade ou tetraktys (em grego), o
quatro sagrado pelo qual juravam os pitagóricos. “Aquele que transmitiu o
Quaternário” é o Mestre, cujo nome se evitava pronunciar em vão. Esse
era o juramento mais inviolável dos pitagóricos. O quaternário sagrado
simbolizava a unidade que se mostra em quatro aspectos no mundo visível,
e também o eu imortal em sua ação concreta.
Um
certo quaternário sagrado aparece também nos escritos esotéricos
e reservados de H.P. Blavatsky. É verdade que, ao escrever sobre a
constituição oculta do ser humano, ela ensinou publicamente sobre
o quaternário inferior e mortal e a tríade imortal. Nesse seu primeiro
esquema, o quaternário mortal é constituído de: 1)Sthula-sharira
(corpo físico), 2) Prana (princípio vital), 3) Linga-sharira
(modelo sutil ou arquétipo usado pela vitalidade, o que inclui a
herança genética do indivíduo), e 4) Kama (o centro dos
sentimentos animais). Já a tríade imortal é formada por 5) Manas
(mente), 6) Buddhi (inteligência espiritual) e 7) Atma (o
princípio supremo). Esse enfoque permite ao estudante uma primeira
aproximação do tema.
Porém,
escrevendo para seus alunos esotéricos em um texto que só foi publicado
após sua morte, H.P. Blavatsky revelou um outro esquema setenário,
traçado do ponto de vista da energia superior. Nele, há um quaternário
sagrado e uma tríade inferior. Desse ponto de vista o quaternário
é formado por 1) Ovo Áurico (aparece aqui a aura imortal),
2) Atma, 3) Buddhi e 4) Manas; e há uma tríade
inferior com 5) Kama, 6) Linga-sharira e 7) Prana.
O corpo físico, Sthula-sharira, não aparece nesse segundo
esquema.[10]
A
tétrade sagrada dos pitagóricos parece ter sido conhecida também
pelos chineses. Geometricamente, a sua apresentação é a seguinte:
.
. .
. . .
. . . .
A primeira linha da
figura representa a unidade e o divino. A segunda linha, a dualidade e a
materialidade. A terceira linha significa a tríade, o eu imortal
em evolução, que reúne em si a unidade e a dualidade. E a quarta linha
simboliza a tétrade ou perfeição, que expressa a vacuidade e a
plenitude. Presente na figura está também a década, ou dez, a
soma total dos pontos, que simboliza o cosmo.
Desse
modo, o quaternário sagrado pelo qual juravam os pitagóricos
significa: 1) o conjunto dinâmico e cíclico da unidade divina; 2) o
processo da manifestação do mundo divino na matéria; e 3) o cosmo que
tudo contém.[11]
49. Nunca comeces uma tarefa antes de pedir a bênção e a ajuda
dos Deuses.
Essa
prática é recomendada em diferentes tradições religiosas orientais e
ocidentais. Na França do século 17, por exemplo, o irmão Lawrence,
usando a técnica da presença divina, orava, ao começar cada tarefa: “Oh,
ser divino, já que você está comigo, e que para cumprir meu dever devo
agora concentrar minha mente em uma tarefa concreta, peço-lhe a graça de
continuar em Sua Presença. E peço que, para isso, Você lance sobre mim a
bênção da Sua ajuda, receba os frutos do meu trabalho, e seja o
proprietário de todas as minhas afeições.”[12]
50. Quando fizeres de tudo isso um hábito,
51. Conhecerás a natureza dos deuses imortais e dos homens,
52.
Verás até que ponto vai a diversidade entre os seres, e também aquilo
que os reúne em si e os coloca em unidade uns com os outros.
53. Verás então, de acordo com a Justiça, que a substância do
Universo é a mesma em todas as coisas.
“De
acordo com a Justiça”, isto é, “na medida dos teus méritos”. A palavra
justiça, neste caso, significa a lei do carma. A vida recebe de cada um
conforme a sua possibilidade, e dá a cada um conforme os seus méritos. A
cada ação corresponde uma reação igual, no sentido inverso: “quem
planta, colhe”. O fato de que a substância do Universo é a mesma em
todas as partes, mencionado no Verso 53, também expressa a Lei da
Justiça e do Equilíbrio Universal. O filósofo pitagórico Thomas Stanley
escreveu em sua obra sobre a vida e os ensinamentos de Pitágoras que há
uma amizade universal unindo todos os seres e todas as coisas.[13] E um Mestre de
Sabedoria escreveu em uma das suas Cartas: “A Natureza uniu todas as
partes do seu Império por meio de fios sutis de simpatia magnética, e há
uma relação mútua até mesmo entre uma estrela e o homem ...”[14]
54.
Desse modo não desejarás o que não deves desejar, e nada nesse mundo
será desconhecido de ti.
A
felicidade não consiste em ter o que se deseja, mas em não desejar o
que não é adequado. Os desejos pessoais distorcem a realidade e mantêm o
ser humano na ignorância. Uma das definições de nirvana, o
estado de êxtase e de libertação espiritual, é “ausência total de
desejos”. Essa é a porta que leva à lucidez ilimitada do sábio, através
da qual ele se conecta com a força do cosmo.
55.
Perceberás também que os homens lançam sobre si mesmos suas próprias
desgraças, voluntariamente e por sua livre escolha.
56. Como são infelizes! Não vêem, nem compreendem que o bem
deles está a seu lado.
57. Poucos sabem como libertar-se dos seus sofrimentos.
58. Esse é o peso do destino que cega a humanidade.
O
peso do destino é o aspecto negativo do carma humano; a carga acumulada
de erros cometidos pela humanidade. O chamado carma positivo, ao
contrário, é o peso da carga acumulada dos acertos humanos. Os santos e
sábios defendem a humanidade das conseqüências mais graves dos seus
próprios erros – como se ela fosse uma criança – ao mesmo tempo que
orientam sua evolução. E poucos poderiam duvidar de que a humanidade
está em uma etapa relativamente infantil do seu desenvolvimento
espiritual.
59. Como grandes cilindros, os seres humanos rolam para lá e
para cá, sempre oprimidos por sofrimentos intermináveis,
60. Porque são acompanhados por uma companheira sombria, a
desunião fatal entre eles, que os lança para cima e para baixo sem que
percebam.
Um
ensinamento básico e central da tradição esotérica é o da unidade e da
fraternidade universal de todos seres.
A
propósito dos versos 59 e 60, Fabre d’Olivet contribui com a seguinte
imagem: “indefesos e arrastados pelas paixões, lançados para lá e para
cá por ondas adversas em um oceano sem praias, eles rolam sem
nada ver, incapazes de resistir ou de ceder à tempestade”.[15]
61. Trata, discretamente, de nunca despertar desarmonia, mas
foge dela!
Uma
formulação mais estritamente literal deste Verso, na versão de
Hierocles, seria: “Ao invés de provocar e estimular a desunião, eles
deveriam evitá-la cedendo espaço.”
Mas
é oportuno destacar que há pelo menos dois tipos de união ou harmonia.
Existe uma harmonia aparente, mantida como fachada para evitar e
reprimir a liberdade e a independência natural dos seres; e há outra
harmonia interior, de coração, que é capaz de identificar, respeitar e
preservar as diferenças naturais entre os seres. Essa verdadeira
harmonia não é sinônimo de uniformidade externa, mas nasce de uma
relação criativa e positiva entre seres e possibilidades diferentes.
62. Oh, Grande Zeus[16], pai dos homens, você os livraria de
todos os males que os oprimem, se você mostrasse a cada um o Espírito
que é seu guia.
O
Espírito que guia cada ser humano é o seu próprio eu imortal, também
chamado de mônada, Atma, ou Atma-Buddhi.
63.
Porém, tu não deves ter medo, porque os homens pertencem a uma raça
divina,
De
fato, tanto a origem como o destino da nossa humanidade são divinos.
Luz no Caminho, um clássico da literatura esotérica, afirma:
“A alma humana é imortal e seu futuro é o futuro de algo cujo
crescimento e esplendor não têm limites”. [17]
64. E a natureza sagrada revelará a eles os mistérios mais
ocultos.
65. Se ela comunicar a ti os seus segredos, colocarás em
prática, com facilidade, todas as coisas que te recomendo.
Quando
a disciplina espiritual nos parece difícil, isso ocorre porque ainda
não compreendemos bem a realidade da vida. A verdade é que a
ausência de disciplina traz dificuldades muito maiores.
66. E ao curar a tua alma a libertarás de todos esses males e
sofrimentos.
67. Mas evita as comidas pouco recomendáveis para a
purificação.
68. E a libertação da alma; usa um claro discernimento em
relação a elas, e examina bem todas as coisas,
69. Buscando sempre guiar-te pela compreensão divina que tudo
deveria orientar.
70. Assim, quando abandonares teu corpo físico e te elevares no
mais puro éter,
O
éter é um dos níveis inferiores do Akasha, a substância primordial ou
Luz Astral. E a recíproca é verdadeira: “O akasha (palavra
sânscrita) é a síntese do éter, é o éter superior”, diz Helena
Blavatsky. No contexto específico do Verso 70, éter significa o
mundo da luz astral, as condições da vida após a morte, que são
determinadas pelo carma produzido em vida.
71. Serás divino, imortal, incorruptível, e a morte não terá
mais poder sobre ti.
Este
Verso final simboliza não só o momento em que se alcança a sabedoria em
termos gerais, mas também a conquista da libertação espiritual, o
adeptado – a condição de um Mahatma, um Buda, um Arhat, um Rishi ou
Imortal. Nesse estágio a alma conhece o Nirvana e não tem mais
necessidade de renascer.
Notas:
[1] Hierocles de Alexandria, filósofo
neoplatônico e neopitagórico do século 5 da era cristã, foi aluno de
Plutarco de Atenas antes de começar a ensinar filosofia em Alexandria.
Esse filósofo não deve ser confundido com outro Hierocles da mesma
cidade, um filósofo estóico que viveu nos séculos 1 e 2 da era cristã.
Veja Encyclopaedia Britannica, 1967.
[2] Entre as principais versões disponíveis
dos Versos estão: 1) Commentaries of Hierocles on the Golden Verses
of Pythagoras, Theosophical Publishing House, Londres, 1971, 132
pp.; e 2) The Golden Verses of Pythagoras, de Fabre d’Olivet,
Samuel Weiser, Inc., Nova Iorque, 1975, 164 pp. O francês Fabre d’Olivet
(1767-1825) foi qualificado por Helena P. Blavatsky como “um gênio de
erudição quase miraculosa”. Outras versões importantes dos Versos de
Ouro incluem: 1) The Pythagorean Sourcebook and Library, Compiled
and Translated by Kenneth Guthrie, Phanes Press, Michigan, EUA, 1987,
361 pp., ver pp.163-165; 2) Vida Perfeita, Comentários aos Versos de
Ouro dos Pitagóricos, de Paul Carton, Martin Claret Editores, São
Paulo, 1995, 188 pp.; e 3) Pitágoras, Su Vida, Sus Símbolos y los
Versos Dorados, de A. Dacier, Versión Española de Rafael Urbano,
Casa Editorial Maucci, Barcelona, edição de cerca de 1920, com 317 pp.,
ver especialmente pp. 173-179. Cabe registrar ainda o trabalho realizado
no Brasil pelo Instituto Neo-Pitagórico (INP), de Curitiba. Fundado em
1909 por Dario Vellozo, o INP tem várias publicações sobre temas
pitagóricos. Seu endereço é Cx. Postal 1047, 80.001-970 Curitiba, PR.
[3] Veja Cartas dos Mahatmas Para A. P.
Sinnett, Ed. Teosófica, Brasília, volume II, Carta 123, pp. 269-270.
[4] Sócrates, Coleção Os Pensadores,
Nova Cultural, Círculo do Livro, 1996, 300 pp., ver capítulo seis do
livro II, pp. 105-108.
[5] A República, Platão, Nova
Cultural Ltda., SP, 2000, 352 pp., ver pp. 68-69.
[6] Veja o texto Chelas and Lay
Chelas, em Collected Writings, H.P. Blavastsky, volume IV,
TPH, Adyar, Índia, 1991, p. 612
[7] Cartas dos Mestres de Sabedoria,
editadas por C. Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília,295 pp., ver
Carta II para Laura Holloway, p. 146.
[8] Para ler mais a respeito da relação
prática entre corpo e mente, matéria e espírito, veja o capítulo 14,
intitulado O Corpo Inseparável da Alma, no livro Três Caminhos
Para a Paz Interior, Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica,
Brasília, 2002, 193 pp.
[9] Veja o termo Areté em História
da Filosofia Antiga, de Giovanni Reale, Edições Loyola, São Paulo,
Volume V, pp. 29-30.
[10] Veja Os Sete Princípios da
Consciência, Carlos Cardoso Aveline, Ação Teosófica, 2002, 44pp.
[11] Veja o Glossário Teosófico, de
H. P. Blavatsky (Ed. Ground), item “Tétrade”. Em torno desse tema, há
também comentários de um Mestre de Sabedoria, na Carta 111, p. 215, vol.
II, de Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett (Ed. Teosófica,
Brasília) sobre o significado arquetípico dos números
pitagóricos. Sobre a década pitagórica, veja também A Doutrina Secreta,
de H. P. Blavatsky, Ed. Pensamento, São Paulo, volume IV, Seções X e
XI, pp. 143-199.
[12] Veja Três Caminhos Para a Paz
Interior, Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica, Brasília, 2002, p.
168.
[13] Pythagoras, His Life and Teachings,
de Thomas Stanley, edição facsimilar da edição de 1687, The
Philosophical Research Society, Los Angeles, EUA, 1970, ver pp. 544-545.
[14] Cartas dos Mahatmas Para A. P.
Sinnett, Editora Teosófica, 2001, ver Carta 47, final da p.217.
[15] Esse é o Verso 32, na contagem de Fabre
d’Olivet.
[16] Zeus. No original em inglês temos
“Júpiter”, o nome romano equivalente ao termo grego Zeus. Hierocles,
como vimos, é do século 5 d.C. Daí o uso do termo romano. Zeus era o
deus grego que chefiava o Olimpo. Na mitologia grega, Zeus era o filho
mais novo de Cronos (Saturno), que Zeus destronou e substituiu como deus
supremo. Zeus é o deus do céu e dos fenômenos atmosféricos.
[17] Luz no Caminho, de Mabel
Collins, Editora Teosófica, Brasília, edição de bolso, 111 pp., ver p.
67